Já
ouviu falar em Limoeiros? Limoeiros era uma comunidade muito alegre, unida, onde
todo mundo se amava e era feliz e sorria e fazia festa e era lindo e vivia
junto e tinha muito orgulho de ser assim desde sempre.
Alguns
membros de Limoeiros resolveram se aventurar pelo mundo, buscar outras
experiências, e saíram da comunidade. Fisicamente, apenas. Porque
emocionalmente, uma vez de Limoeiros, sempre de Limoeiros!
Três
dos membros da comunidade decidiram tentar a vida na roça. Primeiro foi um,
conhecido como Roceiro. Depois, um casal: o Lenhador e a Lenhadora. Ficaram
muito unidos no início, seguindo a tradição de Limoeiros. Capinavam juntos, cortavam
cana juntos, cuidavam do pasto juntos. Depois de um tempo, cada um assumiu seu
sitiozinho e, com tanta coisa para fazer, acabavam quase não se encontrando. No
início, os 3 vendiam cana-de-açúcar juntos. Depois, o casal optou por trabalhar
com fabricação de queijo, enquanto o Roceiro partiu para o plantio de
hortaliças.
No
tempo em que estavam juntos direto, tanto pelos laços de Limoeiros, quanto pelo
trabalho que faziam conjuntamente, se estranharam algumas vezes. O Roceiro e o
Lenhador, amigos de infância, se entendiam do jeito deles, muitas vezes sem
dizer qualquer palavra. Já a Lenhadora, que conheceu o Roceiro quando se
apaixonou pelo Lenhador, tinha um pouco mais de dificuldade de compreender
algumas atitudes do Roceiro.
Certa
vez, o fogão à lenha da casa do casal parou de funcionar. Ficaram horas
tentando consertar e nada. De repente, chega o Roceiro já dizendo “eu percebi
que parou de sair fumaça daqui e vim ajudar. Trouxe lenhas e minhas ferramentas”,
e já começou a mexer no fogão. Só que ele era muito atrapalhado. Derrubou o
leite que estava em cima do fogão, deixou cair um martelo no pé da Lenhadora,
botou mais lenha do que o fogão suportava e, por fim, com tanta lenha, acabou
quase botando fogo na casa inteira. Imagine a fúria da Lenhadora...
E
fez outras tantas trapalhadas. Tipo deixar o portão do casal aberto,
possibilitando a fuga do cachorro deles. Subiu no telhado para pegar uma pipa e
quebrou umas 15 telhas. Quase atropelou o casal com sua charrete... O Lenhador
achava normal, botava tudo na conta do jeitão do amigo. A Lenhadora, em certo
momento, chegou e pensar que ele fazia essas coisas de propósito. Não era
possível uma pessoa tão desastrada!
Enquanto
isso, em Limoeiros, a vida seguia daquele mesmo jeito feliz de sempre. Os 3 iam
até a comunidade sempre que podiam. Juntos e/ou separados. E, eventualmente,
alguém da comunidade ia até a roça visitá-los. Apesar de a estrada entra a roça
e a comunidade ser de mão dupla – ou seja, a mesma distância e a mesma
facilidade entre os dois pontos – os 3 iam mais para Limoeiros do que recebiam
membros da comunidade.
Há
anos a NASA havia enviado um alerta de que um meteoro poderia cair sobre
Limoeiros. Não puderam precisar a data, nem as consequências da queda do
meteoro. Apenas publicaram a notícia em seu site. Alguns achavam que era lenda
urbana e faziam até piada. Outros nem leram a notícia porque não sabiam falar
inglês – idioma em que a notícia fora publicada. Quem realmente se preocupou
com o evento não sabia o que fazer. Afinal, quem teria o poder de desviar o
curso de um meteoro?
Ninguém.
Chegou
o fim de semana. Em Limoeiros, todo mundo junto, feliz, sorrindo e se amando.
Na roça, os 3 curtiam uma roda de viola no quintal, sob a luz das estrelas, com
um 4º membro da comunidade que havia se mudado há pouco. De repente, a previsão
se cumpriu da pior forma possível. O meteoro se partiu em milhares de pedaços,
que caíram sobre a comunidade e atingiram também a roça em cheio. Devastou a
comunidade. Destruiu a roça.
Em
Limoeiros, muita gente ferida, casas destruídas. Aquela alegria deu lugar ao
desespero. Acabou a luz na comunidade. No escuro, pessoas corriam de um lado
para o outro, buscando socorro, procurando feridos. Se esbarravam, gritavam.
Alguns conseguiam, mesmo se arrastando, ajudar os que pareciam em pior situação.
E foram se amparando. As ambulâncias chegaram. Muitos enfermeiros,
medicamentos, água, macas começaram a aparecer. Mesmo assim teve ferido que, de
tão desorientado, ficava correndo sem destino e gritando de desespero,
pisoteando gente que mal conseguia se levantar por conta dos machucados.
Quando
amanheceu, a luz do sol possibilitou a identificação dos estragos. Algumas
casas ficaram irrecuperáveis. Teve gente que chegou a perder os movimentos.
Teve gente que ficou em estado de choque e não conseguia fazer nada – nem se ajudar,
nem ajudar os outros. Mas a comunidade era muito unida. Então aqueles
medicamentos foram distribuídos e os atingidos iam amparando uns aos outros.
Na
roça o estrago também foi grande. Os 4 (os 3 + o recém-chegado) foram atingidos
em cheio. Ao perceber que o casal estava bem machucado, o Roceiro (mesmo
sangrando) pegou seu cavalo mais veloz, botou o casal em cima e correu com eles
para a comunidade. Sabia da importância de estarem em Limoeiros. Não só para
que se medicassem, como também para que pudessem tomar ciência do estrago feito
na comunidade e, consequentemente, ajudar os demais membros.
O
4º Elemento (aquele novo morador da roça) foi parar numa estrada de terra um pouco
distante dos 3. Não conseguiu ser resgatado pelo Roceiro, como
aconteceu com o casal. Mas, felizmente, foi encontrado por vizinhos atenciosos
que o levaram para casa e cuidaram de seus vários machucados.
O
tempo passou.
Em
Limoeiros, alguns habitantes ficaram com sequelas irreversíveis. Uns cegos,
outros surdos. Uns com dificuldade de locomoção. O susto foi tão grande que
deixou alguns catatônicos, com baixa capacidade de discernimento, vivendo uma
realidade paralela, acreditando em verdades que nunca existiram como, por
exemplo, que a explosão do meteoro foi uma chuva de estrelas. Ou que não se
tratava de um meteoro, mas de um cometa.
Só
que a comunidade é muito unida, como já foi dito e re-dito e re-re-dito e todos
fazem questão de reafirmar. Todo mundo se ajudou e Limoeiros virou uma grande
rede assistencial, onde um medicava o outro, um dava banho no outro, um dava de
comer ao outro, um limpava as feridas do outro, um ouvia pacientemente as
sandices do outro. O casal da roça, capengando e cheio de curativos, ia todos
os meses para ajudar também.
Na
roça, mesmo ferido, o Roceiro ia quase diariamente na casa do casal para trocar
curativos e levar mais medicamentos. Aquele cara atrapalhado e controverso, que
por vezes desafiou a paciência da Lenhadora, se tornou um talentoso enfermeiro.
Ajudava até a fabricar os queijos enquanto os machucados das mãos do casal não
saravam!
Se
alguém daquela comunidade unida apareceu para ajudar a medicar o pessoal da
roça? Bem... Como já dito, a estrada que ligava a roça a Limoeiros era a mesma.
Só que não apareceu ninguém não. Mandaram umas caixas de remédio – alguns já
vencidos, inclusive. Cartas foram enviadas uma meia dúzia de vezes. Nelas, todo
um relato do estado clínico dos membros da comunidade e, lá na última linha,
uma pergunta escrita a lápis: “Os ferimentos dos moradores da roça estão
sarados?”. Em seguida, as opções “Sim” e “Não” para serem assinaladas, sem
espaço para justificativa da resposta.
Hoje
a comunidade vive bem, em sua maioria. Algumas casas foram reconstruídas, as
festas voltaram a acontecer e os que ficaram com sequelas da catástrofe estão
adaptando sua rotina conforme suas limitações e reaprendendo a viver.
O
quarteto que vive na roça segue fazendo suas rodas de viola ao redor da
fogueira, com os donos dos sítios vizinhos. Às vezes caem uns temporais e a
cantoria não acontece. Aí eles esperam a lama secar e fazem tudo de novo. O
Roceiro ainda cuida do casal – quando chega medicamento vencido, por exemplo,
ele joga a caixa fora e compra outra igualzinha pro casal não se sentir mal ao
perceber que mandaram produto fora da validade. Só que ele é tão atrapalhado
que sempre um dos dois lenhadores acaba achando a caixa velha no lixo. E o
casal finge que não viu e que acredita que aquele remédio novinho foi mandado
pela comunidade.
Aquela
caixa velha, com a validade ultrapassada, poderia despertar tristeza,
ressentimento. Afinal, a comunidade de onde eles saíram toma todos os remédios
e manda só o que sobra para a roça. Ainda por cima, sem possibilidade de uso.
Mas o casal prefere ver nela a representação do cuidado fraternal que o Roceiro
dedicou quando eles mais precisaram. E é isso o que importa. E salve Limoeiros!
*Atenção,
Roceiro: Isso não quer dizer que você vai quebrar mais 15 telhas do casal, ok? A
Lenhadora te mata!